Você se sente cansado mesmo quando não fez muita coisa durante o dia ou na semana? Talvez estejamos falando de um cansaço mais abrangente, aquele que vem por todo tipo de excesso assimilado e vivido, que passou a ser visto como natural no mundo de hoje.
Aprendemos nas últimas décadas que estar sempre ocupado, ser sempre requisitado e necessário, é um grande bem conquistado que confere a nós valor e importância. Em contrapartida, desaprendemos o valor do descanso, do esvaziamento e da pausa contemplativa presente desde a criação.
Nesse aspecto, perdemos totalmente o rumo e entramos na contramão dos ensinamentos e das expectativas de Deus para a humanidade. O descanso tem a ver com confiança e entrega total de si mesmo nas mãos de Deus mas, sobretudo, o descanso da alma está baseado no contentamento.
Veja o Salmo 131, nele o salmista abre o seu coração para Deus e diz não ser aquela pessoa orgulhosa e arrogante do qual possivelmente estava sendo acusado naquele momento. No caminho com Deus, o jovem pastor amadureceu o seu caráter e a sua alma se enobreceu quando a fez diminuir para si mesmo. Davi, com frequência em seus escritos, nos convida a pensar e nos alerta de que haverá muitas esquinas da vida em que todo homem ou mulher de Deus precisará sondar-se, rasgar o coração em honestidade diante de Deus. É preciso dar-se conta de que não devemos alimentar um falso self de “todo poderoso(a) servo(a) de Deus”, que beira a hipocrisia, a religiosidade ritualística e vazia, a falsa humildade e devoção cristã, a que todos nós estamos propensos em nossa natureza.
Como parte do grupo dos salmos de peregrinação, o contexto exato em que o Salmo 131 foi escrito não fica claro, porém, é certo que Davi era o eleito, o escolhido de Deus para reinar sobre o povo de Israel, o qual fora ungido pelo profeta Samuel para esse fim, conforme detalhado no belíssimo texto de 1 Samuel 16. Alguns estudiosos defendem que Davi nessa ocasião estaria fugindo da fúria e da inveja de Saul que, ainda detendo a coroa de rei, o procurava para matá-lo por temer perder o seu lugar no trono. Para Saul, em particular, o trono era repleto de vaidade e figurava sua fome por poder e status, exatamente o oposto do coração de Davi naquele momento.
O que Davi nos ensina, não apenas neste salmo em específico mas no decorrer da sua vida como ungido de Deus e como rei, é que muitas vezes é preciso “descer do trono” e reassumir o devido lugar e o estatuto único de todo ser humano, perceber a corrupção interior, a pequenez, a limitação e a própria incompetência para alcançar tudo que pretensiosamente se pode pensar e buscar ser. Com a mesma sinceridade em que Davi expos a sua falta de arrogância naquela ocasião, não raras as vezes, também foi capaz de desnudar a sua vaidade, cobiça e descaminhos da sua alma.
Em alguns momentos de sua vida, a exemplo de outros salmos por ele escrito, Davi se deu conta disso. Ele percebeu que havia se desvirtuado, passando a buscar coisas que estavam “além do seu alcance”, maravilhosas demais até mesmo para um rei da sua magnitude. Ora, o que poderia estar fora do alcance de um rei como Davi, sendo belo, rico, próspero, bem-sucedido, famoso, temido pelos inimigos, vitorioso em muitas batalhas e ungido por Deus? Exatamente aquilo que não se lhe havia sido destinado por Deus!
Isso nos faz pensar que, por mais que sejamos ou nos tornemos alguém supostamente relevante nesse mundo, sempre existirão coisas que não estão ao nosso alcance e que são passageiras. O limite existe e é dado por Deus para todos nós. É salutar entendermos isso o quanto antes em nossas vidas. No ponto em que esse limite se estabelece, fazendo uma linha divisória entre o que tenho e sou e o que não possuo e não sou, deve começar o exercício do contentamento. Chamo de exercício porque não é natural. O salmista diz no verso 2: “...fiz calar e sossegar a minha alma...”, num ato deliberado e consciente (versão A. Revista e Atualizada).
O nosso coração pecaminoso, ambicioso por natureza, tende a querer sempre mais do que tem e do que é, denotando sua insegurança. Contentar-se é uma constante luta contra a natureza que está em nós. Nossa natureza pecaminosa é insatisfeita e reclamante, além de cobiçosa e vaidosa.
Parece óbvio dito assim, mas o fato é que grande parte dos nossos adoecimentos tanto no âmbito emocional, físico, quanto no espiritual, muitas vezes estão ligados exatamente a nossa falta de prática do contentamento, o simples identificar dos limites postos por Deus para cada um de nós em cada fase distinta da nossa vida. Foi assim desde o início. Se temos o jardim inteiro a nossa disposição, somos instigados internamente ou externamente a querermos exatamente aquele outro gramado mais verde, ou aquele fruto do vizinho, ou aquela roupa, ou aquele carro, ou tal posição e cargo que não nos foi concedido tocar.
Esse mal reflete-se em todas as áreas da nossa vida: bens materiais, relacionais, posições sociais, cargos ministeriais, o preenchimento da nossa agenda, etc. Perceba que mesmo sendo ungido previamente e distinguido por Deus entre os irmãos mais velhos e vistosos, Davi não ousou antecipar os passos e os desígnios de Deus quanto ao trono de Israel. Pelo contrário, esperou, contentou-se com sua posição atual, sondou suas motivações, e distanciou-se do perigo. Confiou e convidou seus compatriotas a firmarem a sua confiança em Deus somente. Que belo exemplo de contentamento, temor do Senhor e autocontrole do ego ele nos lega!
A nossa falta de contentamento é doentia, revela quem realmente somos, seres obcecados por ter cada vez mais, a querer muito além do que o próprio Deus nos concede dia a dia, mês a mês, ano a ano, sempre com total e infalível fidelidade.
Henri Nouwen (2007), em seu livro “Tudo se fez novo: um convite a vida espiritual”, nos adverte que como seres da era moderna, caímos na armadilha de estarmos sempre ocupados e preocupados com alguma coisa, especialmente aquelas que ainda virão. Se temos qualquer coisa (bens, fama, estabilidade, reconhecimento, etc.) não queremos perder e nos esforçamos dia após dia para manter essas posses, sejam elas no campo material, emocional ou até aquelas que, equivocadamente, classificamos como espiritual. Certa vez escutei de um missionário em um momento de descontentamento e raiva: “Você não sabe o que eu já tive que fazer pra chegar até essa posição!”.
Nouwen nos diz que o grande mal dessa época para os cristãos é que acabamos como seres sobrecarregados e ao mesmo tempo vazios. Parece um grande paradoxo, pois gastamos a vida lutando para ter e para ser cada vez mais e mais, lustrando a nossa própria imagem, atualizando o status e o currículo nas redes sociais com frequência, entulhando as dispensas e armários com o intuito de nada faltar no mês ou na estação seguinte. O resultado disso é obvio e claro, nos sobrecarregamos tendo que cuidar dos mesmos entulhos materiais e imateriais, provocando em nós mesmos uma imagem, embora lustrada, sempre pesada e cansada. É interessante notarmos que “sobrecarregado e vazio” é o resumo da queixa de quem está em Burnout!
A grande armadilha é que estando em todo tempo atarefados para mantermos o que já conquistamos e para adquirirmos ainda um pouco mais de valor e reconhecimento, aumentamos o nosso patrimônio e afogamos a nossa própria alma. Fazendo assim, estamos cuidando do nosso reino chamado ego (foi o que Saul fez) e quanto mais ele cresce, mais temos que nos gastar para preservá-lo do cupim, da traça e da ferrugem que hoje representam a falta de elogios e a auto-desvalorização no mercado competitivo em que vivemos, ainda que sejamos cristãos.
A nossa falta de contentamento, em todos os aspectos, nos afasta de Deus. Isso ocorre especialmente no âmbito que chamamos de espiritual, onde alocamos o nosso exercício ministerial, a nossa busca por aperfeiçoamento, e os nossos projetos para o reino. Mas será mesmo? Não seriam, na verdade, muitas destas coisas meras roupagens que tentam esconder as reais motivações de um coração voltado para a arrogância e para o orgulho, coisas que tanto nos assediam nesse século da imagem e da superficialidade? Sabemos que não foi a superficialidade o critério usado por Deus para escolha de Davi entre os filhos de Jessé, antes, Ele advertiu Samuel dizendo: “não se impressione com a aparência... o homem vê o exterior, porém o Senhor, o coração.” (1 Sm 16:7).
O fato é que hoje, em todos os aspectos, a quantidade é elogiada e incentivada, enquanto a sábia e corajosa escolha por uma coisa apenas, a melhor delas, é criticada. A matemática consumista e narcisista que nos arruína diz que o melhor é sempre mais, no saber, no ter e no fazer. Isso nos cega e facilmente nos impede de enxergarmos a verdadeira riqueza que está a nossa disposição nessa vida, se não material, com certeza espiritual e relacional.
Às vezes sento-me para ler um livro devocional ou contemplativo dos atributos de Deus e logo me vem à mente pensamentos de censura, como: “Você está perdendo tempo, deveria estar trabalhando, diminuindo a sua lista de pendências!" E, então, a culpa segue-se facilmente. Tenho que lutar constantemente para escolher a melhor parte nessa vida, apenas estar com Jesus, e isso nada tem a ver com orações relâmpagos ou programadas.
Certamente a nossa falta de contentamento é o que não nos deixa descansar, tal qual a figura trazida pelo salmista no salmo 131:2: “Assim, como a criança desmamada fica quieta nos braços da mãe, assim eu estou satisfeito e tranquilo, e o meu coração está calmo dentro de mim.” (NTLH). Observe os adjetivos usados que retratam o estado de quem contentou-se (ficou contente e grato) com o que acaba de receber: quieto e satisfeito. Isso gera imediata tranquilidade para o cérebro, que gera calma no coração. Essa fórmula simples é exatamente o oposto do que temos na sociedade vigente, isto é, pessoas com coração e mente ansiosos, inquietos, intranquilos, preocupados, ocupados sobremaneira e cronicamente cansados.
O antídoto para todo esse mal está resumido pelo salmista no último versículo deste curto salmo: “Povo de Israel, ponha a sua esperança em Deus, o Senhor, agora e sempre!” Quietude, satisfação, tranquilidade e calma são qualidades daqueles que buscam viver a vida com simplicidade, desfrutando e praticando o contentamento todos os dias, pondo a sua esperança em Deus, hoje e sempre.
O que nos vem no dia de hoje, o bem ou o mal, é a exata medida do que Deus tem para nós. Contentemo-nos, alegremo-nos e descansemos nele! Como disse Agostinho em autobiografia, Confissões: “O nosso coração não encontra descanso até que descanse em ti.”
Veronica Farias
Missionária
Psicóloga clínica
Membro do CIM Brasil
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